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A CASA DOS AVÓS

  • Foto do escritor: Alayde Mestieri
    Alayde Mestieri
  • 30 de jan. de 2024
  • 10 min de leitura

Atualizado: 9 de fev. de 2024

Avós, paternos, maternos, uns mais avós que outros. Mais presentes ou mais ausentes. Sempre avós. Sempre ocupados em afazeres e “netos”. Porque será que quando somos crianças tudo parece ser tão grande? A casa do avô materno! Um santuário... um museu... uma cozinha... uma alfaiataria...um espelho...um ferro à carvão... uma mesa de mármore cinza...uma enorme tesoura...várias réguas de costura... manequins...alfinetes...tecidos...giz de marcar costura... louças... muitas louças... caixinha de osso para guardar rapé... Quem sabe o que é isso? Uma escada enorme...Um porta-chapéus...bengalas...Principalmente cheiro de comida gostosa...Essa era a casa dos avós.


A campainha, tão alta...Ela não alcançava no pequeno botão branco que soava alto.

O relógio com o pêndulo dourado  balançando...Tocava à cada quinze minutos, e na hora certa escutava-se outro som parecido com uma pequena melodia.

A vitrola. Pick up com braçinho “Torens três cobrinhas”. Tinha que trocar sempre a agulha porque ficava “rombuda” e arranhava o disco. Existia uma caixinha preciosa com agulhas novinhas douradas. Era guardada e não podia mexer. O disco pesado, 78 rotações, “moderno”, geralmente de musicas italianas tinham a capa de papel amarelado.


O móvel da vitrola era de madeira com um “ alto falante” recoberto de tecido brocado, muito “chic”, bem envernizado e lustroso. As válvulas eram grandes, pareciam lâmpadas e queimavam. Quando isso acontecia, o que não era estranho. O avô ia solenemente para a cidade comprar válvula nova, e a queimada era exibida para a família antes de ir para o lixo. A tampa era alta e abria por cima. Porque será que tudo era tão grande? Ou será que ela e que era muito pequena. Só percebeu isso bem mais tarde, quando já era uma moça.

Os álbuns de música italiana, Benamino Gigli, Caruso, Tito Schippa, Mario Lanza. Canções napolitanas, ouvidas, cantadas, sonhadas, explicadas e amadas.


Quando ela completou dez anos, ganhou de presente de seu avô um álbum contendo a ópera completa Madame Buterfly de Giacomo Puccini. Ainda está quardado. Sessenta anos de lembranças. O álbum contém oito discos 78 rotações e pesa no mínimo 5 kilos. Gasto pelo tempo... Relíquia de uma história. Qual criança que hoje ganharia uma ópera completa de presente de aniversário e ficaria feliz? Pois é, ela ficou feliz, muito feliz. Escutou, escutou, até decorar tudo. Antes seu avô contou toda a história da pobre japonesa abandonada pelo “maledeto Pinkerton”. Como em toda boa ópera, ela se suicida no final dramático!...


E o dia em que o avô contou o enredo da ópera O Pagliccio de Leon Cavallo. Ela chorou muito. Coitado do palhaço. Até hoje, quando vê um palhaço fica triste, pensando na vida infeliz que ele deve ter. Quando escuta “Vesti La giubba e La faccia enfarina” ainda hoje chora... A trama do avesso é ver o que está oculto e ver pelo avesso, perceber o que os outros não percebem. O que está por traz da máscara do palhaço? Vida triste de privações. É preciso fazer a plateia rir, rir, rir muito. Apesar da tristeza oculta. Será que é preciso enxergar o que as pessoas não veem? Ela vê o avesso e sofre. Mas o palhaço não é para trazer alegria? felicidade?


Essa é a trama do avesso. O avesso das coisas dos acontecimentos. O ontem pode entrar no hoje, mas o hoje não pode entrar no amanhã. Só quando for amanhã... Ainda não. Divaguei. Voltando para a casa do avô.

O rádio. Ondas curtas. Último tipo, moderno enorme, de madeira também,  com dois botões grandes e transparentes. Um para ligar e desligar servia também para aumentar o volume. O outro para sintonizar as estações. Tinha um ponteiro que se movia com o botão. Ela não podia mexer, só ver e escutar.


A geladeira. Houve um dia em que os avós adquiriram uma geladeira. Memorável! Todos foram visitar a geladeira, branca e grande. Sua avó fez uma “capinha” de couro marrom para colocar no puxador da porta. A família admirou a habilidade da avó, mas a capinha marrom era muito feia. Era só para proteger. De que?

Para chegar na casa, existiam dois degraus de mármore branquinhos, que seu avô fazia questão de lavar quase diariamente. Ele mesmo cuidava disso. O resto da casa não era tão higiênica assim, mas os degraus da entrada eram muito brancos e enganavam bem. Assim que abriam a grande porta, vislumbrava-se uma enorme escada de madeira.


Mais tarde quando ela ficou adulta a escada não era grande nem assustadora. Detalhe, para evitar descer as escadas cada vez que tivessem que abrir a porta, os avós olhavam pela freta da veneziana do quarto da frente, se fosse alguém conhecido ou visita interessante, abriam a porta puxando uma cordinha encardida, que acionava a lingueta do trinco e magicamente a porta era aberta. Ela ficava encantada, como seu avô era inteligente. Eles não precisavam descer e subir para abrir a porta.


Aquela escada era perigosa, sempre descer de mãozinha dada com um adulto, essa foi a recomendação. Subir, só segurando no corrimão. Assim a escada ganhou sua importância. Um dia ela ouviu o comentário e sua mãe: “Olha ela já consegue descer sozinha”, Ela se sentiu muito orgulhosa dela mesma, estava crescendo!

No alto da escada um imponente “porta chapéu” ou “porta guarda- chuva” ou “pendura casaco”? Era muito usado e admirado. Relíquia de família, havia pertencido aos bisavós. Falando em bisavós, existiam pela casa retratos muito antigos emoldurados e ovais dos bisavós. Senhor e senhora em trajes de tirar fotos, sérios, os homens com grandes bigodes brancos. Muito esquisito.


Passando pelo estreito corredor, era tudo interessante. O quarto onde seu avô trabalhava a oficina de alfaiate, tudo ali era para ver de longe. Que mesa enorme! Pesada, alta. Era muito grande, coisa de adulto. Seu avô era grande. Mas não era. Muito depois ela soube disso. Naquele tempo, ele era grande e autoritário. Às vezes doce. Cantava muito e gostava de comer.

Na oficina, ficava em um canto a cama solitária da Zia Queró.

O importante, quase como um altar, com todos os seus ícones, era uma cristaleira que pertencia à família desde muito tempo. Esse móvel, em especial, guardava tesouros especiais. Um minúsculo binóculo dourado com capinha, aqueles antigos usados na ópera. Quardava também um monóculo com extensor, igual aos usados por piratas. As louças mais raras e caras, ali estavam. A caixinha extra de rapé também.


Tudo era mostrado por seu avô, em ocasiões em que estava de bom humor. Só podiam ser vistos nas mãos dele, nunca nada podia ser tocado.

Esse móvel era fechado por uma minúscula chave. Em si, era imponente. Possuía três corpos, sendo que o fundo era revestido de espelho. No centro um mármore cor-de-rosa dava um toque importante e bonito. Era realmente um altar dentro de casa.

O quarto de seus avós era peculiar. Como em toda casa da época, havia um guarda-roupas de três corpos, sendo que a porta central ostentava um espelho oval. Dentro, as roupas velhas misturavam-se às mais novas, tudo tão socado que as portas não fechavam direito.


No canto esquerdo, ficava o “pichiche”, onde estavam os perfumes e uma banqueta. O mais interessante e intrigante era a cama. Acompanhava o estilo dos móveis. No colchão havia dois grandes sulcos com um calombo no centro. Em um buraco côncavo dormia seu avô, e no outro a avó. Mais tarde ela entendeu que esse devia ser o colchão do casamento, nunca havia sido trocado ou virado de posição. Os corpos moldaram os sulcos. Quando sua avó morreu, seu avô continuou dormindo no buraco dele. Interessante! Hábitos antigos...

Hora do almoço, hora do almoço. Religiosamente às 11,30horas. O almoço era feito pela sua avó sempre. Ela começava a cozinhar às 6 horas da manhã, logo após despertar. Demoraram para comprar uma panela de pressão. Tudo devia ser cozido lentamente. O molho de tomates, esse tinha um aroma que é sentido na lembrança até os dias atuais.



A grande mesa de mármore cinza da cozinha vivia enfarinhada com macarrão feito em casa secando. Feito à mão um a um. Nada de máquina. Que difícil! Que sabor!

Os tomates. No verão, sempre no verão, porque era preciso haver muito sol. Sua avó comprava kilos de tomates maduros e secava-os no sol, antes os cortava pela metade. Posteriormente havia todo um processo de temperos e desidratação que durava alguns dias. Quando estavam bem desidratados esses tomates eram fritos no azeite com pimentão. Inacreditável! Ainda para rematar coincidia com o Natal! Aromas inesquecíveis.


Antes da cozinha havia uma “copa”, onde eram feitas as refeições diárias. Nessa copa ficava a geladeira, a vitrola, um armário com portas de vidro transparente. Nesse armário, ela sabia que sua avó guardava um segredo. Havia um bule de porcelana verde e dourado de forma quadrada. Servia para guardar os “trocados”, moedas, um pequeno tesouro escondido da avó! Há! Havia também uma cadeira de vime com almofadas. O “trono” do seu avô onde ele sentava após as refeições para uma cochilada.


 Nessa copa eram recebidos os padres da Igreja do bairro para almoçar. Seu avô ficava todo orgulhoso porque tinha um sobrinho italiano ordenado sacerdote.

Os jantares de Natal eram feitos na mesa da oficina de costura. Toda a família se reunia para saborear as comidas que eram preparadas com no mínimo uma semana de antecedência. Ela sempre dormia na cama da sua avó na noite de Natal e era levada tarde da noite para sua casa no colo de seu pai. Caminhando... vários quarteirões. As noites eram quentes, às vezes garoava. Sua mãe preocupada com o sereno. Seu irmão andando de mão dada com sua mãe também quase dormindo.


Passando pela cozinha, tinha um pequeno banheiro com duas portas. Engraçado.

O quintal era uma festa! Alguns vasos, uma jardineira para plantar temperos. Um muro muito alto ao fundo coberto de umidade e musgo, com alguns buracos. Um desses buracos serviu para enterrar o primeiro dentinho de leite caído daquela boquinha tão inocente. Toda vez que ela ia para a casa dos avós, corria para o quintal e olhava o buraquinho onde estava seu dente. Sorria, agora banguela.


O mais interessante do quintal era o barracão. Seu avô tinha a mania de marceneiro, fazia banquinhos, concertava cabos de martelo, afiava facas e ali no barracão guardava suas ferramentas. O martelo enorme, chaves de fenda, só para ver, um esmeril de manivela. Lindo! Rodava, rodava, e quando estava rodando com velocidade, um prego fazia com que aparecessem várias estrelinhas brilhantes. Que alegria!

Bem no alto, ela nunca alcançou, havia um pequeno espelho redondo e mágico pendurado na porta. Esse espelho aumentava o tamanho das coisas e servia para sua mãe apertar cravos do rosto. Que coisa estranha!


Havia uma época do ano em que a Igreja do bairro festejava a Santa Padroeira da cidade de Rossano na Calábria, Nossa Senhora Acheropita. Hoje ela sabe que a festa é no mês de agosto. Naquela época, o importante era a procissão.

Procissão italiana; no andor onde ficava a Santa, eram penduradas várias fitas azuis onde as pessoas “pregavam” notas de dinheiro com alfinetes, e a Santa era garregada pelos homens importantes do bairro. Seu avô era um desses homens.

Nesse dia era pendurada na janela da frente da casa a melhor colcha que sua avó possuía. A casa que tivesse a colcha pendurada, era homenageada pela Santa com uma parada, e o padre dava uma benção “especial”.


O mais lindo eram os anjinhos. Crianças vestidas com camisolinhas de cetim azul, e asinhas com peninhas penduradas nas costas. Na cabecinha uma coroinha de estrelinhas. Ela sempre quis ser anjinho da procissão, mas sua mãe nunca deixou, e ela não soube por que não.

Havia uma banda tocando alto, anunciando de longe que a procissão estava se aproximando. Todos corriam para a janela forrada com a colcha e almofadas para apoiar os braços. Os lugares eram disputados, um empurra, empurra. Primos, tios, parentes, pessoas na porta. Nessa ocasião aberta, todos queriam ver a Santa Acheropita. Não sei porque dava um nó na garganta, uma vontade de chorar, talvez de emoção. Ainda hoje quando ela houve uma banda ou fanfarra sente o nó.


A irmã de seu avô, a Zia Queró, que na realidade tinha o mesmo nome que a Santa, acompanhava a procissão inteira rezando o terço. Andava desde a saída da Igreja até o retorno. As mulheres cobriam a cabeça com um véu e carregavam o rosário. Os homens usavam o melhor terno e seguravam o chapéu nas mãos em sinal de respeito.

Esse era um dia importante, e ela teimava em querer ser anjinho. Nunca foi..... A banda era enorme, com trombone, tambor, bumbo, corneta, ela achava lindo e chorava escondido para os primos não ver. Aquele nó, lembranças...

As pessoas cantavam hinos religiosos que mais pareciam um lamento. Ela sabia todos de cor. Ave, Ave, Ave, Maria....


Acontecia também a procissão da sexta feira Santa. Essa era muito triste. Passava o Jesus “morto”. Ela chorava muito, porque Ele “estava” ali morto. Todas as mulheres cobriam o rosto com um véu preto e rezavam. Não tinha andor com donativos, a banda tocava a marcha fúnebre, não havia paradas, nem anjinhos, tudo muito triste! Houve uma inesquecível, passou um caixão e supostamente Jesus “estaria” lá dentro sendo carregado. Dramático! Assustador! Ela perguntou para sua mãe o que tinha dentro do caixão e a mãe disse que era o Jesus morto. Saiu de mansinho e chorou muito. Na capela da escola havia um enorme crucifixo com Jesus de tamanho original todo ensanguentado! Que maldade! Por que mataram Jesus? ( Até hoje matam Jesus todos os dias.)

E assim foi sua infância, marcada por medos, emoções sofridas, sustos, sonhos e muita reflexão...


Na casa dos avós morava também a Zia Queró. Que saudades! Diziam que ela era meio abestalhada. Mas não. Morreu virgem. Nunca namorou. Nunca teve um pretendente, só trabalhou para a cunhada como serva calada e muito útil.

Foi muito querida por aquela criança. Os primos riam dela, faziam caçoadas. E ela quieta, ficava triste. Ouviu histórias contadas em dialeto calabrez. Entendia tudo, e a zia repetia sempre a mesma história.


Quando ela soube que a Zia Queró havia atravessado a ponte ao encontro do Arco-Iris, sentiu curiosidade e quis ver como era. Subiu sozinha aquela escada que já não era tão grande e entrou onde a Zia estava deitada. Arrumadinha, com um vestido de algodão florido bem miudinho. As mãos cruzadas seguravam um rosário. Parecia dormir e estava esperando...


Ela não ficou assustada nem com medo, então era assim? A Zia estava dormindo, foi uma despedida, a última vez que se viram por aqui. Desceu as escadas com pressa e com pressa voltou para a sua casa. Adeus!

Em algum momento da nossa infância fomos cobrados, criticados e controlados. A vida segue, mas os pedaços nos acompanham.

É preciso ter coragem, a coragem para continuar, mesmo depois de aqueles que amamos nos terem deixado. Sonhos, Esperança e Coragem....

 
 
 

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