O Sapato
- Alayde Mestieri
- 30 de jan. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 9 de fev. de 2024
Por que essa paixão por sapatos? Sapatos coloridos, de festa, sandálias, com pedrinhas, altos baixos, médios, rasteirinhas, tudo, tudo que tem a ver com os pés. E os com pulseirinhas no tornozelo, uma loucura!
Adoro comprar sapatos, olhar vitrines com sapatos, e gosto mais ainda de levar alguns pares para casa. Que delícia!
Invariavelmente os mais bonitos não são confortáveis. Quando experimentados, são lindos, não doem os pés, mas servem só para pousarmos para uma foto. Antes de chegar em casa, já tenho uma vontade louca de arranca-los dos pés. Isso porque quase sempre saio da loja com os novos calçados e os antigos, que também são novos na sacolinha.
E o armário, da até pena só de olhar. Cada par tem sua historinha particular. Um foi para tal festa, outro foi comprado de última hora, porque os pés doíam com os que estavam calçados, outro era muito lindo e não dava para deixar de levar. Há! E tem também aqueles que foram comprados bem longe, quase como recordação de viagens. Uns na Turquia, outros na Itália, muitas sandálias gregas, lindas, e assim vai.
Os sapatos me fazem feliz quando estou triste. Alegram meus olhos, dão colorido ao meu caminhar.
Ainda lembro da minha primeira sapatilha. Era vermelha, e foi comprada na antiga Sears do Brasil. Eu era uma adolescente casada e meu marido me conduzia pela mão, olhando as vitrines do grande Magazine. Fiquei namorando aquela irresistível sapatilha vermelha. Não estava habituada a comprar, era ainda uma menina, e meu pai só adquiria o necessário. Qual não foi o meu espanto, quando meu marido, isso soava estranho, ainda não havia me acostumado com a nova situação. Entrou na loja e pediu para a atendente trazer a sapatilha para eu experimentar. Comprou as sapatilhas vermelhas, que nos pés não eram tão bonitas como na vitrine, mas eu saí com elas calçadas. Já são 56 anos que isso aconteceu e ficou marcado como se fosse ontem. Fiquei encantada, eu só estava olhando, não era para comprar, era para ver.
Não é mania é consciente e é bem controlada, às vezes. Tudo começou bem antes, quando aquela menininha assustada e sozinha, brincava no seu quarto da imensa casa com amigos imaginários e pensamentos solitários. Sempre olhava para seus pezinhos calçados, porque andar sem sapatos não podia nunca!. Era “perigoso pegar uma friagem”...
E ela aprendeu que deveria estar sempre com os pés calçados. Quando ela era menininha, os sapatos “custavam muito “ eram caros, artigo de luxo, e deveriam “durar”. Mas os pezinhos não sabiam disso e teimavam em crescer. Por que o sapato tão novo, já doía e apertava. Aquele de sair, o usado nas ocasiões consideradas importantes e festas.
O dia de comprar sapatos, que bom! Dia feliz. Geralmente eram de verniz preto com uma pulseirinha de botão ou fivelinha. Sempre usados com meias branquinhas, ou não tão branquinhas. No frio, meias ¾ aquelas com elástico que deixavam marcas e doíam muito abaixo dos joelhos.
Mas o que fazer com os sapatos novos quando não serviam mais? Simples, eram cuidadosamente cortados na ponta, com uma faquinha afiada, e pronto! Os dedinhos já podiam sair para fora do sapato apertado. Assim, eram usados por mais um tempo, em casa, ou para brincar. Ela olhava os pezinhos com tristeza e achava que tinha ficado feio, muito feio.
Podia acontecer também de ficarem gastos, e aparecia um tal furo na sola. Agora era perigoso molhar o pé, ou pisar em um prego enferrujado, muito perigoso. Então os sapatos furados iam para o sapateiro, que muito caprichoso, colocava uma “meia sola”. E ficavam pesados. Voltavam engraxados, “quase novos” e podiam ser usados por mais um tempo. Quando não valia a pena pagar o sapateiro, a solução era fácil, usava-se um jornal dobrado bem “grosso” como uma palmilha por dentro. Assim os pezinhos estavam protegidos da umidade.
Os sapatos eram tidos como presente. Na primeira vez que ela foi para a escola, teve que usar sapatos com solado pespontado e pretos, muito duros e com cadarço de amarrar com os de menino. Esses eram usados com meias pretas, como mandava o uniforme.
Coitado do irmão da menininha, quando menos esperava, o sapato duro era usado como arma e ele vivia com as canelas roxas. Mas também, ele a segurava, prendendo suas mãos e ela só tinha os pezinhos para se defender. Chorando sempre, dava chutes e chutes, até ser solta com gritos de ambas as partes. As canelas ficavam roxas e o rosto branquinho, se transformava em um vermelho escuro assustador.
E aqueles pezinhos calçados, nem sempre felizes. A menininha sonhava em caminhar livre! Andar para onde tivesse vontade. Mas, não podia, era proibido e perigoso. Às vezes ela conseguia dar umas escapadas, feliz, ficava alegre mesmo com os sapatos furados na ponta ou forrados com jornal. Era muito bom poder fazer coisas escondida. Nem sempre longe dos olhos do seu atento irmão, que parecia tudo saber e corria contar para os adultos. Que pena! Estragava a magia de poder fazer sozinha. Mas não importava, já estava feito, e era bom!
Ir para os cortiços da vizinhança, andar por ruas desconhecidas,conhecer pessoas, e também andar de bonde, ida e volta até a Praça das Bandeiras. Custava uma quantia guardada em segredo. $0,50 centavos de Cruzeiro. Esse era o preço para andar no bonde “Camarão”. Lindo! Amarelo e vermelho, tinha um letreiro bem grande no alto e na frente escrito “Praça das Bandeiras”. Na lateral as letras C.M.T.C. Emocionante! Aquele barulhinho vindo de mansinho nos trilhos bem polidos, fascinante! Aventura a vista!
Ela ia e vinha e ninguém, ninguém, ficava sabendo, nem mesmo seu irmão.
À noite ela sonhava acordada com as idas e vindas de seus pezinhos e ria de suas inocentes travessuras.
Existia o dia importante de ir ao fotógrafo. Logo ali, pertinho de casa. Fazer “pose”. Escolher o melhor vestido e o sapato mais novo. Esses sim, tinham que aparecer. Era sempre uma tortura. Fazer várias poses com muitas lâmpadas quentes em uma pequena sala no fotógrafo. Tinha também um guarda chuva preto aberto, e ela não entendia porque. Sua mãe sorria, seu irmão fazia caretas e ela teimava em fazer beicinho, quase sempre com vontade de chorar. Nunca sorriu em nenhuma foto. Esse dia era muito difícil, mas diziam ser importante.
O dia da foto, memorável para a família, incluía o penteado. Seu longo cabelo, sempre solto, como ela gostava, de senti-lo cobrindo a testa pelos olhos, era cuidadosamente penteado em longas tranças, puxado para traz e amarrado com fitas. Fitas coloridas e grossas, largas e duras. Ela ficava muito triste nesse dia, os laços deveriam ser grandes e apertados. Tudo direitinho. E aquele rostinho não conseguia sorrir. O cabelo deveria estar solto, esvoaçante, aí sim, talvez ela conseguisse sorrir. Tirar os sapatos duros, o vestidinho engomado, o grande laço dos cabelos e o calor daquela sala infernal.
O fotógrafo era como o médico, antipático, fazendo micagens para arrancar um sorriso e também louco de vontade de acabar com tudo aquilo rapidamente. Ele tinha um cabelo lisinho, penteado para trás, provavelmente com brilhantina e um horroroso bigodinho. Usava uma gravata borboleta e colete. Sempre assim. Muito feio e sem graça, daria até para rir, se não fosse a situação tão desagradável.
Lembranças, guardadas até os dias de hoje. Lembranças de uma época de uma vida....
Voltando a mania por sapatos, houve um dia muito especial, quando ela estava mais ou menos com 9 anos de idade. Sua mãe não se sabe o porque, lhe disse: “Hoje você vai sozinha escolher seus sapatos”. Colocou a quantia em $ em suas mãozinhas e mandou ela para a loja “Capardo”. Essa loja era virando a esquina, não precisava atravessar qualquer rua. E assim, ela saiu muito importante e assustada para a sua primeira compra. Olhou e olhou toda a vitrine tão conhecida e timidamente entrou na loja. Pediu “aquele” sapatinho preto de verniz e com pulseirinha. Não se atreveu a escolher um outro diferente, sua mãe poderia não aprovar. Parece que nem viu nada, só aquele conhecido. Pagou, não teve troco. Porque será? Saiu da loja com a caixinha embrulhada e cuidadosamente carregou o precioso pacotinho, ainda assustada para casa.
Hoje ela gosta de comprar muitos sapatos, todos, diferentes e coloridos. Muitos ficam sem uso por um tempo e são doados outros machucam os pés e desaparecem...Tem aqueles poucos, que são usados até ficarem gastos, não machucam, são os preferidos. Nunca mais até o furo na sola, nunca mais o sapateiro, nem os pezinhos crescem mais!
Hoje as caminhadas são raras, ela dirige seu automóvel, tudo é muito diferente, mas que saudades dos sapatos cortados ou furados!!!
Ainda hoje ela se pega sonhando acordada com pezinhos de bailarina. Calçados com sapatilhas de cetim cor de rosa. Rodopiando, rodopiando, leve, leve, voando com seu vestido de tule e os pezinhos sempre no ar, esse sim, é um sonho irrealizável.
Como é bom comprar sapatos!!!
Toc, toc, toc, esse som ela ainda escuta quando lembra do grande corredor de tábuas largas sem tapete. Seus pezinhos faziam barulho e a denunciavam, as tábuas rangiam, toc, toc, toc...Era bom andar só de meias, assim ela não era percebida e sorrateiramente passava pelo corredor até alcançar seu objetivo.
As meias ficavam logo pretas e ela ouvia sua mãe a repreendendo por ter tirado os sapatos. Que horror! Tudo não podia...
留言